Literatura de Fantasia
O Psicológico e a Magia na Narrativa Fantástica
A literatura fantástica, a literatura fabulosa, a literatura de mistério e suas várias subdivisões são uma manifestação impressionante da mente humana e da comunicação humana.
Da habilidade incrível do cérebro humano de criar narrativas a nosso convívio moderno com o insólito em suas variadas gradações, a literatura de cunho fantástico ou maravilhoso representa e comunica tantas coisas que o trabalho de Umberto Eco ou de Tzvetan Todorov só aumentaria consideravelmente, tendo em vista que a cada ano mais e mais textos e outras formas de arte trazem para a realidade mais e mais narrativas cheias de detalhes únicos, que provêm do íntimo, do ressignificado pelas mentes de várias autoras e vários autores.
Se por um lado essa peculiaridade torna únicos vários momentos, elementos, descrições e ressignificações na literatura fantástica, por outro lado ela indica a natureza de nossa relação com o que podemos criar de desconhecido e o entendimento que fazemos dele – e, por extensão, o quanto podemos entender, controlar e criar a respeito de nós mesmos.
O escritor Brandon Sanderson cunhou os termos soft magic system e hard magic system (análogos às “ciências duras” e “ciências brandas” como academicamente definidas) para descrever dois tipos diferentes de organização de regras para presença e uso de magia em histórias fantásticas. O que seria a “magia dura” (hard magic system) compreende um universo em que a magia é feita para ser crível para os leitores e tem regras, limitações e aplicações conhecidas para as personagens e para quem lê. Opostamente, a “magia branda” (soft magic system) não oferece explicações nem muitos detalhes do como ou do porquê há magia na história ou como ela funciona ou quais são seus limites.
Um exemplo de literatura que emprega a magia branda incluiria muitos dos contos de fadas, bem como cânones da literatura fantástica clássica, sobretudo O Senhor dos Anéis, que marcou a consolidação desse gênero literário com continuação para a pósmodernidade. Lá a magia não é explicada, mas ela é um elemento presente que adiciona espanto e mistério ao que já é fantástico e mítico. Não há explicação clara para as origens, as aplicações e limites dos poderes de muitas das personagens, nem é possível descobrir ao longo da narrativa como esses poderes são vistos ou entendidos pelas outras personagens.
Já a magia dura está cada vez mais presente nos trabalhos modernos e contemporâneos de fantasia (a série As Crônicas de Gelo e Fogo, de George R. R. Martin são uma notabilíssima exceção). O modo como J. K. Rowling explica a magia nos livros da história de Harry Potter, apresenta a bruxaria como dotada de regras, de sistemas passíveis de estudos, de certos limites e de detalhes que a integram muito claramente a um mundo funcional. Um mundo no qual as personagens podem ter um entendimento muito grande e claro sobre o funcionamento desse mistério que também nós, como leitoras e leitores, estamos conhecendo.
Talvez outras formas de arte cujo apelo é mais visual, como visto em séries, cinema e vídeo games, estejam fazendo o pêndulo do fantástico vir cada vez mais perto dos sistemas de magia dura e cada vez mais longe da clássica magia branda que permeia narrativas mitológicas, fábulas, contos de fadas e histórias folclóricas. Se por um lado as histórias de magia dura pretendem tratar a magia, na narrativa, como algo mais crível e inteligível, por outro também abrigam muito efeitos muito mais visuais – As adaptações para o cinema de O Senhor dos Anéis e Harry Potter, por exemplo, são bem diferentes se estivermos contando as vezes em que alguma personagem recorre à magia, sofre seu uso ou a percebe presente. Isso sem falar que o número de raios coloridos ou faíscas de muitas cores que aparece em Harry Potter é bem mais maior do que o que aparece em O Senhor dos Anéis.
Possivelmente pelo apelo ao visual e pelo extravagante, já li opiniões bem negativas a respeito da magia dura como apresentada na literatura mais recente, ao passo que os críticos que tecem tais comentários tendem a elogiar a magia branda, quase oculta, que aparece no cânone da literatura fantástica e da literatura maravilhosa. Penso, contudo, que isso se deva muito mais à uma familiaridade do que real valor das obras que usam a magia dura.
Isso porque há pelo menos essas duas fortes correntes de expressão na literatura fantástica que variam conforme o tempo passa, pelo que a leitura sugere – A magia branda oportuniza o foco sobre a tensão psicológica, ao passo que a magia dura favorece uma “tensão fantástica”.
Machado de Assis, no conto A Igreja do Diabo, trata do sobrenatural praticamente do começo ao fim, mas por mais que ali figurem Deus todo-poderoso e todo-paciente e um diabo com asas e aparência vil, em nenhum momento o foco da história é a natureza fantástica do confronto ideológico entre o bem e o mal, entre Deus e o diabo, mas sim o dilema da natureza humana apresentado com uma profundidade e com um realismo psicológicos que muito bem caracterizam o valor de Machado de Assis.
No meio do caminho, As Perguntas de Dom Lobo, como narrado por Câmara Cascudo, apresenta o dilema de um ser maligno, um homem com boca de onça, cujo castelo fabuloso materializa-se sobre uma cidade pecadora e, todo dia, devora um coração de gente se a vítima não lhe souber responder as perguntas que possam forçá-lo à expulsão. É quando um jovem humilde e pobre o desafia e vence que a história tem seu desfecho feliz, mas fica claro pela narração do autor como isso funcionava – o jovem consegue responder as três perguntas do Dom Lobo, cada resposta simples e figura do senso comum, mas a verdadeira vitória vem porque o jovem faz uma pergunta cuja resposta é ainda mais simples, mas que o vilão não podia dizer: o nome de Jesus Cristo.
Assim fica claro para quem lê que a magia ali tem seus porquês – o castelo e o Dom aparecem por causa da maldade da gente local. Há uma condição para o extermínio de corações de nativos parar, e a maldade pôde ser vencida ao se responder as perguntas do desafio e invocar o nome de Jesus, fazendo com que o castelo e o Dom Lobo desaparecessem. O maravilhoso e o mundano estão fluindo juntos, ora um se destacando mais que o outro, mas fazem com igual importância uma trama só.
Já qualquer amante dos quadrinhos de super-heróis aprende muito cedo em suas leituras quais são os limites dos superpoderes dos heróis e heroínas, e muitas vezes sabe como funcionam esses poderes e quais são suas utilidades. Pouco fica consignado ao mistério e ao inexplicável, havendo sempre uma regra, uma explicação ou qualquer tentativa plausível de situar aquele ser ou poderes ou eventos em um universo maior. Ali não é o dilema moral ou a profundidade psicológica que está em destaque – é a tensão criada pelo entendimento e aceitação dessas regras fantásticas que permite a identificação dos dilemas, dos desafios e a aventura poder fruir em desfecho.
Há exceções, claro, e essas regras interativas não são imutáveis, sobretudo para um gênero cujas características definidoras incluem o mistério e o fabuloso. Mas em geral talvez seja bom ter em vista a dinâmica dual desses eixos ou axiomas: A magia dura atrai para si muito destaque na narrativa, e tomará tempo do leitor se este for seduzido por suas regras e promessa de entendimento. Ela tem em si o potencial de criar dilemas que só existem e que podem ser resolvidos somente por suas próprias regras, por suas limitações, por sua natureza conforme quem escreve deseja fazer. Nesta história, toda vez que a moça usar a magia, um pouco do seu sangue some de seu coração e ela quase desmaia, tendo que recobrar os sentidos após fazer cada passe de mágica.
Já é possível perceber que ela só terá “combustível” para sua magia enquanto houver sangue em seu corpo, e o suficiente para mantê-la viva. Naquela outra história, nada de magia ou insólito até o momento em que descobre-se que o jardineiro que nunca interagia com outras pessoas além do protagonista é na verdade um fantasma que estava já há muito tempo possuindo esse único homem que podia vê-lo e ouvi-lo e assim levar sua vingança do além-túmulo para todos aqueles que o humilharam na grande mansão – Mas como isso tudo é possível, nos detalhes, e como funciona a possessão, a interação, enfim, nada disso fica claro. Nem precisa, pois o foco não é o mistério envolvido, mas sim as tensões entre as personagens e os mistérios dos assassinatos sendo investigados.
Digo que Sanderson, assim como Todorov e Eco, foi muito feliz em tentar mapear um pouco mais desse terreno tão fascinante que é o da literatura fantástica. Eles trouxeram para os vários aventureiros e aventureiras desse gênero ferramentas e conceitos importantes e valiosos, pois ajudam a tornar mais conscientes e consistentes os esforços de escritoras e escritores cujo trabalho lida com o mistério, com o desconhecido, com o fascinante e com o irreal. Entre as artes de um Fausto tentado por Mefistófeles e o que aprontam bruxos britânicos em sua adolescência há muito material não só para ser explorado, lido e apreciado, mas também lido com olhos de pesquisador – sem que haja perda alguma do fascínio que o fantástico e o maravilhoso almejam produzir.
Se estes gêneros são terras estranhas e nebulosas onde é fácil se perder tão fácil quanto é se fascinar, autores como os três são de certo modo cartógrafos e guias experientes. A jornada com eles pode até ser mais fácil, mas, como sabe qualquer amante da literatura fantástica, não seria nem um pouco menos emocionante.