Derivando de longa tradição, compor a narrativa em três atos bem definidos deve ser visto não como norma, nem como mero detalhe, mas sim como um recurso flexível.
A tradição aristotélica (na Poética) de composição de narrativa cedo ou tarde cruza o caminho daquelas pessoas que, dedicando-se a escrever melhor, estudam para tal. Ali deparamo-nos com uma estrutura quase arquetípica que aparece também em outra convenção muito famosa: A Jornada do Herói.
Mas enquanto a Jornada do Herói apresenta-se bem mais complexa sob vários pontos de vista – de escritor a leitor – a Estrutura em Três Atos pode ser uma abordagem mais simples e uma forma mais direta e clara de se organizar os eventos que perpassam a narrativa. Isso não quer dizer que não valha a pena dar uma olhada demorada no que foi escrito a respeito da Jornada do Herói – como uma análise proposta por
Joseph Campbell, também chamada de monomito –, uma vez que é possível, para alguns teóricos, organizar as subdivisões da Jornada do Herói em três atos também.
Mais do que uma associação direta ao começo-meio-fim que Aristóteles dizia passar a sensação de completude e que aprende-se que cada texto deva ter (na lógica introdução-desenvolvimento-conclusão da metodologia científica e normas técnicas, ou até mesmo o que Hegel propõe como tese-antítese-síntese), essa Estrutura em Três Atos (ETA), ou Enredo em Três Atos, ou Paradigma dos Três Atos, é resultado de uma observação de vários roteiros e enredos de narrativas literárias, para cinema, teatro e outras plataformas. Ela representa uma proposta de arcabouço que organiza a narrativa em três momentos definidores, com suas próprias caraterísticas:
O primeiro ato é a introdução da história. Ele começa com o anzol que vai fisgar os leitores para “dentro” da história. Nele consta a apresentação de protagonistas, a situação corrente para as personagens de destaque e o dilema que faz a história ser contada e “merecer” ser lida;
O segundo ato é a descrição da forma como as personagens protagonistas lidam com o dilema: sua busca por soluções para o problema posto, sua necessidade de se reinventar, sua forma de encarar a crise que se instaura, sua partida em busca de reajuste. Contém a pergunta que o desfecho da história responderá para dar fim ao que está sendo narrado;
O terceiro ato, então, inclui o clímax da história e seu desfecho. A resposta para a pergunta instaurada como ponto chave do segundo ato, o retorno e transformação final das personagens principais e o que é feito delas.
As descrições dos atos tendem a variar muito de teórico para teórico. Dependendo de quem discorra a respeito, subdivisões podem ser propostas, bem como abordagens preferíveis para cada uma delas na hora da escrita. Contudo, de modo geral, analisemos da seguinte forma cada um dos atos como geralmente são apresentados.
Fonte: Wikimedia Commons
Se havia alguma promessa de vida naquela casa tão simples na área rural, ela minguou. O pai de João e Maria está cada vez mais próximo de morrer de fome. A inanição trará a morte dele e de sua companheira (geralmente, nas histórias, madrasta das crianças). Duas bocas, contudo, têm uma chance maior do que quatro. Se os filhos estiverem longe, de um modo ou de outro, o pai e sua companheira podem sobreviver por mais um tempo. Os filhos talvez morram de fome ou outro percalço na floresta, talvez sobrevivam; mas se ficarem, certamente morrerão junto com os adultos. Descartado o assassínio, o abandono nas matas é a única solução – e logo vira realidade para o casal de irmãos.
É no primeiro ato que está o chamariz. É possível dizer que ele começa já em elementos externos ao corpo do texto da narrativa: a capa, a lombada, a sinopse. Os elementos da diagramação (a fonte, ilustrações, enfim). Mas, supondo que tudo isso já compre a atenção do leitor – e que o leitor compre o livro, talvez – a narrativa tem pouco tempo, em geral, para motivar o leitor a seguir adiante, a querer saber o que você tem para contar. Tal como estima-se que formamos as primeiras impressões a respeito de estranhos em poucos segundos de interação uma vez que ela é iniciada (onde a linguagem corporal tende a ser definitiva), o começo da narrativa deve ser altamente eficiente para comunicar interesse e relevância.
Mas é também no primeiro ato que está a tensão. Ela começa como um prenúncio, como uma ameaça antes distante, mas que está se aproximando ou pairando próxima, e está chegando a hora dos protagonistas sentirem o seu toque e terem seu mundo familiar posto fora dos eixos do equilíbrio. Assim, em uma composição que apresente a personagem principal, sua vida até então e o que as mudanças vindouras estão começando a fazer dela, o primeiro ato apresenta protagonismo e choque. O leitor precisa saber sobre quem é a história. O que está em jogo. O que pode ou já está sendo perdido.
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Elementos constitutivos do primeiro ato:
- Protagonistas – Até aqui e continuando, os termos protagonista e personagem principal, apesar de não serem o mesmo conceito, estão sendo usados de maneira quase sinônima. A narrativa provavelmente gira em torno de uma personagem. Mesmo que haja outros, os leitores só saberão disso se forem convencidos pelo primeiro protagonista a continuarem a ler.
- O lugar familiar – Cenas idílicas, situações comuns, até mesmo clichês: isso pode fazer o leitor interessar-se pelas páginas iniciais por um sentimento de identificação e familiaridade que o protagonista também deve gerar.
- O anzol – É necessário fazer a história andar, pois até então ela periga resumir-se a uma sucessão de cenas da vida corriqueira das personagens principais. Aqui está o prenúncio de que as coisas estão para mudar.
- Chega o desafio – De algum modo, para que haja conexão do primeiro ato com o segundo ato, é necessário que o protagonista perceba que sua vida está em abalo. O leitor deve perceber isso também. Um choque entre a vida como ela era e como ela está começando a ser deve ser perceptível.
- Começa a jornada – As primeiras necessidades de enfrentamento estão embelecidas. A mudança é uma necessidade, talvez inescapável. Pode haver a falsa sensação de dever cumprido, somente para se descobrir que o problema está apenas começando.
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Conhecendo a personagem principal e vendo a que mudanças ela está sendo submetida, preparamo-nos junto a ela para o que está por vir.
Fonte: Wikimedia Commons
A fome do pai levou-o a um extremo. Poucos lembram, poucos analisam, poucos encaram desse modo, mas o mesmo acontece com a bruxa. Ela está morrendo de fome em sua casa de doces. Os irmãos podem estar se virando das formas que conseguem para sobreviver ao cativeiro cruel, mas o que a fome faz com a bruxa é o obstáculo maior. Onde uma trilha de pedregulhos ou migalhas falhou, a astúcia de duas crianças unidas por um laço de sangue não pode falhar.
Apesar de ser fácil descartar o interesse em algumas histórias por causa de um mau começo (chato, demasiado clichê, incapaz de gerar identificação, enfim...) ou de atacar uma história pelo seu desfecho (que desaponta, que revolta, que não corresponde a expectativas, etc...), deveria ser igualmente importante apontar aquelas histórias que não sabem constituir um “meio” capaz de unir o início e o fim de forma satisfatória, consistente e interessante. Trilogias tendem a ser muito mais avaliadas ou julgadas por suas aberturas ou fechamentos, de modo que o meio fica ou perdido na avaliação ou, mais provavelmente, descaracterizado: partido em duas partes, uma que se cole ao começo, outra que se cole ao fim.
Mas o segundo ato deve ser um ato em si, não uma ponte, não uma transição pequena. Ele abriga mais elementos que o primeiro e que o segundo atos, geralmente, e é nele que está a complexidade do arcabouço. O segundo ato pode ter o que pode bem ser o coração da narrativa, pois ele é a reação do que foi posto como ação no primeiro ato, ao passo que o terceiro ato será consequência do que for feito nele.
Mais importante do que ver o segundo ato como “parte do meio” ou “aquele pedaço de história antes do fim”, é importante pensar que o segundo ato pode ser o primeiro ato para o terceiro ato. Ou seja: B é o segundo ato para A, mas para C, B é o primeiro ato. Isso não é pedir uma digressão muito grande, afinal não se recomeça a história pelo meio, tampouco se começa uma nova sem encerrar o que estava começando, mas, essencialmente: o segundo ato traz as consequências das tensões estabelecidas no primeiro ato, as reações das ações feitas anteriormente. Do mesmo modo, o segundo ato deve ter as ações e tensões de escalão muito maior para quais as soluções e reações serão o terceiro ato. Se o que levou o leitor do primeiro ao segundo ato já foi algo drástico, o que o levará do segundo ao terceiro ato deve ser algo derradeiro.
No primeiro ato conhecemos as personagens, o lugar, a ameaça. No segundo ato precisamos entender como a interação entre esses elementos muda a personagem, muda seu espaço e nos muda enquanto leitores. O leitor precisa saber sobre o que é, de fato, a história. Que seja grande o medo de se escrever um segundo ato chato.
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Elementos constitutivos do segundo ato:
- Apostas mais altas – O que antes servia como solução pertence a uma realidade que já não existe mais. Mais coisas estão em jogo, mais riscos estão sendo ou precisam ser assumidos. Não é possível desistir ou voltar atrás.
- Perda – Se a perda do cotidiano já familiar para o protagonista trouxe-nos ao segundo ato, perdas muito maiores e significativas mostram que o segundo ato é um momento de crise e enfrentamento, de batalhas internas e externas.
- Tudo ou nada – Muito provavelmente, haverá no segundo ato pelo menos um momento em que a personagem principal deverá optar entre tentar continuar a ser o que era e tentar reinventar-se. O mundo antigo ou um mundo novo estão em jogo.
- O desconhecido – Não há como voltar ao começo, ele já não existe mais. O personagem mudou demais, e também as circunstâncias. Qual será a consequência desses dilemas? O que sobrará da identidade da personagem que estamos acompanhando até aqui?
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De novo, a fome. Ela estava no começo, esteve no meio e foi ela que levou os envolvidos ao final. A fome fez o pai abandonar seus filhos, a fome fez a bruxa aprisioná-los, a fome fez os irmãos caírem em sua armadilha. É cabível que a história tenha em seu desfecho dois pontos de grande destaque – o forno e o retorno a uma casa que, finalmente, livre do que a fome trouxe consigo, pode viver o final feliz.
O primeiro ato apresentou sobre quem e sobre o que era a história. O segundo ato mostra sobre o que de fato é a história. Traz também uma pergunta, sendo que ela deve, de algum modo, ser respondida no terceiro ato, no final. A bruxa conseguirá matar a fome? Mais do que isso: Os irmãos conseguirão escapar da fome da bruxa? Na verdade, acima disso tudo: O problema persistente da fome será resolvido nessa história?
O terceiro ato será, provavelmente, por motivos naturais da mente humana, o que mais ficará na lembrança, o que mais terá marcado os leitores. Há perguntas no segundo ato que ele deve responder, mesmo que de maneira não conclusiva. Nem toda história termina apresentando para o protagonista e para o leitor um sim ou um não. Pode haver um talvez, graus variados de um provavelmente, pode haver um e sim/ não, e além disso; ou sim/não, porém...
Enfim, de algum modo o terceiro ato deve responder às tensões estabelecidas no segundo ato, estas muito maiores que as do primeiro ato. Enquanto as resoluções de tensão do segundo ato levam ao terceiro ato, as do terceiro ato são conclusivas. Os leitores precisam saber se você sabia o que estava fazendo. Fazendo como responsável pela escrita, pela condução das personagens, pela descrição de pessoas, situações e espaços, pela organização das experiências e pela criação de um significado para quem acompanhou a história até o final.
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Elementos constitutivos do terceiro ato:
- Clímax – O terceiro ato deve levar ao desfecho, bem como fazer do desfecho em si sua parte definidora e principal. Era inevitável, após o segundo ato, chegar até aqui. É necessário encarar o problema de maneira conclusiva – o problema pode não ser resolvido definitivamente, mas o protagonista chegou ao máximo de si.
- Uma nova manhã – o que estava no começo – a rotina, as personagens, as situações – não são mais as mesmas. É hora de um recomeço, de uma nova perspectiva, de uma regeneração.
- Balanço e julgamento – As ações geram consequências então o desfecho deve tentar responder a maior parte das perguntas que o segundo ato suscitou e mostrar o resultado dos empreendimentos iniciados anteriormente. Quanto ganhou-se, quanto perdeu-se, o preço pago pelas ações tomadas.
- O fim é o fim? – É possível deixar em aberto a continuidade da história ou alguns de seus elementos, sugerindo ao invés de afirmar. Isso não quer dizer que é uma continuação que será escrita, mas um final aberto não deve nunca ser descartado. O fim da narrativa, obviamente, não precisa ser o fim da história. Pode ser mais fácil fazer um final aberto em histórias onde o narrador está em primeira pessoa, por exemplo.
- Reflexão – Apesar de toda a história narrada poder conter vários momentos de reflexão ou de provocação, refletir faz parte da identidade constitutiva do terceiro ato. O primeiro e o segundo atos podem abrigar questionamentos, mas o terceiro ato deve suscitá-los.
Apesar do tom talvez fabuloso ou aventuresco, essa proposta estrutural de arcabouço narrativo pode ser aplicada a qualquer tipo de narrativa que busque a linearidade padrão começo-meio-fim. A ETA pode ser mais visível até mesmo em mídias que não incluam, para nós, receptores/interlocutores, a palavra escrita.
Um exercício muito válido a ser feito é pegar diferentes histórias de gêneros diferentes e tentar identificar em suas narrativas os pontos aqui citados de modo a dividi-las em três grandes atos. A facilidade ou dificuldade em reconhecer essas divisões pode não estar ligada à sua facilidade de fazer isso na hora de escrever a sua história, mas o exercício vale igualmente.
O que leva a um conselho: não é necessário ser metódico e planejador a ponto de criar-se um esquema por escrito, talvez até uma tabela, que possa abrigar o texto de modo a garantir que cada tópico aqui abordado conste na narrativa de modo a organizá-la em três atos. Fazer isso sequer garante que o que será escrito estará no conforme do que geralmente concebe-se como característico de cada um dos atos – a distância entre o desejo e o que de fato é escrito pode ser assombrosa.
É provavelmente mais válido escrever a história sem que a questão da ETA seja mais do que uma referência que paire próxima e, uma vez terminada, ou talvez “empacada”, valha a pena ver o quanto ela tem do que é descrito nessa abordagem.
Ou seja, talvez seja mais válido ter a ETA como uma referência e como uma ferramenta de checagem e aprimoramento, de lapidação, não como princípio para escrita ou ponto de partida.
Outra coisa extremamente importante, à guisa mais de aviso do que conselho, é lembrar que essa abordagem que divida um arcabouço em três partes é arbitrária. A Jornada do Herói, por exemplo, como proposta por Campbell, consistem em dezessete estágios (ainda que agrupados em três partes).
Diferentes abordagens podem oferecer um número diferente de partes constituintes para uma narrativa, sem que elas precisem atender à proposta aristotélica do começo-meio-fim. Isso não quer dizer que a história não precisa ter esses três elementos, mas a narrativa pode ter elementos característicos diferentes entre si, bem definidos, que possam atender à mesma proposta para garantir a ideia de completude sem ter de estar dividida em três partes.
Por exemplo, se você se propuser a dividir sua história em oito pedaços da seguinte maneira (inventados para este artigo tão somente):
- – Apresentação do espaço e personagens;
- – Primeiro contato com o problema;
- – Primeira solução;
- – Segundo e mais profundo contato com o problema;
- – Busca por uma solução mais definitiva;
- – Desafio para obter a solução;
- – Aplicação da solução;
- – Desfecho após a solução.
Ainda assim a narrativa terá começo, meio e fim. Outros leitores ou teóricos poderiam dividir sua narrativa em três atos da mesma forma. Mas você, por preferência ou estilo, decidiu seguir essa outra organização ou percebeu que ela ficou divida assim.
Como o processo é arbitrário, não é possível dizer que seguir a ETA ou inventar sua própria divisão é certo ou errado.
Mas, reitera-se, dividir a narrativa em blocos de natureza pré-definida pode auxiliar não só na organização para quem está começando a história ou “empacou” em um ponto dela, mas também na lapidação do texto ao permitir uma análise mais criteriosa e minuciosa de seus arcos internos.