A Voz e o Estilo do Autor
I – O Domínio do Idioma
Três cenários: Em alguma noite da época entre 2008 e 2011, li em uma aula do curso de Letras um artigo (que infelizmente perdi) que citava a tentativa e desistência de um autor (cujo nome infelizmente nunca lembrei) em tentar verter Grande Sertão para, se não me engano, o inglês.
O tradutor em potencial comentava da sua primeira tentativa: ao deparar-se com o emblemático caso do diabo e do redemoinho-redemonho-redemunho que aparece ao longo da obra, ele notara que dentro de “redemoinho”, muito provavelmente, Guimarães Rosa havia explorado talvez muito propositalmente a parte “demoinho” para chegar ao “demonho” e ao “demunho” citados mais além no parágrafo. O assombro diante da perícia e mestria de Guimarães Rosa e imaginar ter de conseguir feito semelhante ao propor-se a verter para outra língua tamanha obra o fez abandonar tal esforço. Isso em nada significa que o tradutor em questão seja inepto – pelo contrário, demonstra sua admiração pelo cânone e um conhecimento tão grande das nuances da língua e da natureza malandra de algumas palavras que não se viu, naquele momento, com os recursos ou cabeça para encarar um desafio tão exigente.
Em Junho de 1995 a coleção Era Glacial foi lançada para o jogo de cartas colecionáveis Magic: The Gathering, criado pelo matemático americano Richard Garfield. Uma das cartas era intitulada Moor Fiend. Os responsáveis pela tradução para o português nomearam-na “Capeta da Charneca”, o que teria acarretado em um problema: No Brasil era fácil deduzir o que era um capeta, mas o que era uma charneca? Entremeios, em Portugal sabia-se o que era uma charneca, mas o que seria um capeta?
Por fim, em 2010, se não me engano, em um curso de formação de escritores ministrado por Carlos Henrique Schroeder, de Jaraguá do Sul, li um de seus contos em que uma das personagens, um escritor, demonstra o fascínio pela palavra opróbio, a letra vizinha apunhalando com o acento agudo a letra “o”, enquanto as demais letras da palavra testemunham o assassínio de diferentes formas.
Os três cenários que compartilho serviram para mim como referência para tentar determinar a natureza de uma das facetas definidoras dessas características um tanto sutis do autor: a voz e o estilo. A faceta que me proponho a analisar aqui é a do domínio do idioma. Isso, nesse nosso caso, significa o domínio da Língua Portuguesa, mas não imagino que, em se tratando da análise da natureza do ato da produção literária como manifestação individual e subjetiva, deva limitar-se à expressão como ocorre em um único idioma. Tampouco imagino que tal faceta, a do domínio do idioma, deveria estar limitada somente à expressão escrita.
Mas, para tornar um pouco menos difícil a análise de algo tão subjetivo, cambiante e não muito fácil de se mensurar, limito-me a fazer a dita análise através de duas exposições: 1 – a da essência do domínio do idioma e 2 – a da mescla entre o que esse domínio representa e como ele se manifesta no esforço escritor.
1 – Dourado-Klimt e Amarelo-Gogh
Pode ser latente ou questão de gosto, algo um tanto inato lapidado pelo tempo e pelo esforço, em busca de autoconhecimento, ou algo fruto de identificação e admiração que exige o tempo gasto em busca de verossimilhança e inspiração, mas as preferências da nossa “paleta pessoal” são, de qualquer modo, uma parte integral na nossa compreensão estética e da maneira como a expressamos em nossos trabalhos.
Uma busca por imagens do pintor simbolista Gustav Klimt revela quase que sem esforço a preferência dele pelos tons ambarinos e amarelos, mas sobretudo o dourado. O ouro não é só um adorno que toma conta ou reveste suas mais famosas e celebradas obras, mas é o próprio meio em que elas são feitas, o fundo sobre o qual as outras cores estão dispostas e pintadas para compor a cena de dois amantes se entregando a um beijo ou abraço, ou uma árvore de galhos sinuosos, ou uma dama de expressão serena e de quê renascentista, ou as armas bizantinas de Palas Atena.
O quanto desse ouro presente nas obras foi fruto de preferência pessoal de Klimt, advindo de sua admiração da arte japonesa ou influência ressoante de sua infância com filho de um ourives não é possível quantificar ou discernir, mas o foco da atenção resida em sua forma particular de transformar o ouro em um meio através do qual podia expor seus traços fugidios, seus rostos de olhar oblíquo ou gestos extravagantes e sombrios.
De forma semelhante, o quanto das suas palavras, enquanto escritora ou escritor, ou ourives das palavras, revela de suas preferências pessoas, admirações ou eco de infância e estudo?
Invejo o ourives quando escrevo:
Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.
Imito-o. E, pois, nem de Carrara
A pedra firo:
O alvo cristal, a pedra rara,
O ônix prefiro.
Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena, como em prata firme
Corre o cinzel.
~ Olavo Bilac, “Profissão de Fé” (trecho)
Se a fase do ouro de Gustav Klimt tornou sua carreira tão especial e sua arte tão característica, a paixão de Van Gogh pelo amarelo é ainda mais notória e rasgada. Há mesmo teorias que tentam explicar o porquê do pintor holandês ter tanto fascínio (que eu prefiro chamar de familiaridade ou adoração) pelos matizes do amarelo. Sua paleta seleta e muitas vezes vibrante não é a de um sommelier de tintas a óleo, nem o conjunto de cores de um homem desequilibrado. São, em grande parte, sua manifestação ora grata, ora autoimposta, ao meu ver, de celebrar a beleza às vezes diminuta, ou talvez escassa, que em um quarto, em um vaso com lírios – ou girassóis – ou em um trigal dourado contém doses singelas do que pode nos fazer, como deve ter feito a Van Gogh, ser capaz de chegar ao final do dia, ser capaz de viver um dia a mais, ser capaz de celebrar de maneira quase totêmica – no caso dele através das cores – a admiração pelas coisas pequenas fazendo de sua apresentação um espetáculo, uma exuberância quase extravagante. Pintar de maneira tão larga e ambarina um vaso com flores é um esforço primo do esforço do poeta parnasiano que buscava tirar da observação do pequeno e do quieto uma beleza tão grande que merecia todo um desfraldar do vocabulário e todo um trabalho hercúleo com as palavras.
(...) Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
~ Francisca Júlia, “Musa Impassível – I”
2 – A Musa: Impaciente, Impassível ou Impossível
Tenho medo de passar por “cabalístico” ao propor olhar as nuances do ato de escrever da maneira como fiz no trecho anterior. Não sou parnasiano para escrever de tal maneira rebuscada e lavrada, mas admiro, como eles, o ofício de escrever e o esforço que ele pode propor à guisa de desafio. Mas, exposta minha sugestão de abordagem quanto à essência do domínio do idioma como demonstrativo do estudo, do gosto pessoal ou da influência identitária (muito provavelmente uma amálgama cambiante das três, como uma equação em que essas três constantes variam corriqueiramente, resultando de maneiras diferentes ao longo da vida), fica agora minha análise do domínio do idioma em si como parte característica da voz e do estilo.
Guimarães Rosa foi emblemático por vários motivos, mas o que mais fascina grande parte de seu séquito é sua criatividade e desenvoltura ao lidar com o léxico. Foi ele quem permitiu dizer que hoje você está “ensimesmuda” ou “ensimesmudo”. Tal como Shakespeare, será lembrado para sempre também porque além de usar do idioma com maestria, enriqueceu-o com um quinhão próprio de criações vocabulares.
Olavo Bilac e Francisca Júlia, poetas parnasianos, devassavam a Língua Portuguesa em busca da palavra que pudesse participar ou terminar a rima perfeita no verso perfeitamente elaborado. Esquadrinhar o idioma era um esforço tão notável que eles, cientes da nobreza dessa dedicação, escreveram em homenagem a isso.
E qual é o seu grau de conhecimento do idioma? O quanto dele permite que você se depare com situações intraduzíveis? O quanto dele permite que você traduza suas influências, sua história e seu gosto pessoal? O quanto de seu domínio idiomático é porta e o quanto dele é muro? Explico: o quanto do seu conhecimento do idioma per- mite que você passe para outra sala, para outro campo, para outro nível de expressão e entendimento; e o quanto dele é uma barreira que lhe força ao retrocesso ou à necessidade de melhora?
Você gosta de orações entrincheiradas em outras orações, como os tradutores de Dostoievski volta e meia acabam se apresentando? Ou prefere as sentenças diretas e enfeitadas para o carnaval de tanto ler Jorge Amado? Prefere um fluxo de consciência de tanto se identificar com a vida e obra de Virgínia Woolf ou faz questão de lapidar um trejeito complicador de tanto admirar James Joyce? Saber como foram a vida e dramas pessoais de Florbela Espanca ou Katherine Mansfield ou Emily Dickinson aparece de qual modo na sua escolha de palavras, construção de metáforas e simbologias? Seu pé no fantástico é a única influência de Tolkien em sua escrita ou por acaso suas longas descrições da paisagem e do tempo também não o são? A padaria em que você comia pão doce com seus pais um final de tarde sim, um final de tarde não, dos oito aos dez anos, não apareceu várias vezes nos seus textos de maneiras diferentes? Sua preferência por proparoxítonas é ocasional, fruto de uma mente de musicista do exótico, ou uma busca quase arqueológica por palavras que desafiam o lugar-comum – a ponto de, como Guimarães Rosa, criá-las quando não as encontra, para poder fugir desse lugar-comum?
Essa inspiração, a Musa, é impaciente – Você não tem paciência para as palavras, elas vêm da pilha de expressões que você acumulou ao longo da vida, cada leitura vertendo um jarro de palavras e frases em um poço de onde você tira o que precisa conforme mergulha nele o balde. Se as águas desse poço são turbulentas ou calmas, o ditame da rotina o informa; mas se ele é raso ou fundo, depende unicamente de sua dedicação como leitor e de sua dedicação como escritor, não furtando-se jamais a ser um admirador das palavras. Essa Musa é impassível – Você exige do idioma uma resposta, e busca de forma imperiosa o que ele por vezes parece negar por capricho ou até soberba.
Se o idioma tivesse vida, talvez fosse um deus de profecias e adivinhações e você o serviria como principal e mais fiel oráculo – e esse deus lhe negaria respostas e visões como se risse por trás das nuvens, desafiando sua força de vontade e ímpeto, forçando sua paciência a desfiar-se em pesquisa frenética ou estudo meticuloso e calmo até encontrar a palavra certa, que sirva ou de caco final e lustroso para terminar um mosaico colado a muito custo, ou uma pé- rola ao redor da qual valha a pena se construir toda uma joia que a enalteça. Essa Musa é impossível – Você domina a língua, mas a língua domina você. É possível navegar no mar da Língua Portuguesa e saber nadar nele muito bem, mas não é possível dominar suas ondas, ser sua mestra ou seu senhor.
Às vezes, só depois da terceira edição é que você perceberá que tem agora a palavra que melhor se encaixaria naquela frase que já envelheceu publicada. Às vezes é quando já está pronta e encaminhada e terminada a obra que você conseguirá rearranjar da melhor maneira – porque então o tempo e condições não permitiam – as palavras que melhor descreveriam o que você queria dizer. O domínio do idioma é multiforme da origem à expressão. Seja de natureza pessoal – da história e da gênese – ou por gosto não investigado, ou por influência – nota- da ou ignorada, proposital ou não – o grau de domínio do idioma demanda também mais de uma forma de se manifestar na produção escrita.
Tomando para o fechamento a lição de Olavo Bilac, o ourives é ourives porque transforma o ouro com seu ofício, que domina, mas mais de uma joia será perdida em suas mãos. A culpa pode ser do material, pode ser dos prazos de trabalho, pode ser por outros mil e um fatores externos... Mas o domínio do ofício será o balizador para julgamentos feitos pelo próprio ourives acerca de seu próprio trabalho e também para os julgamentos que fizerem de seu esforço se mal fadado. Como ourives de palavras, artesãos de idioma, cabe- nos, se acreditarmos nos parnasianismos, lapidar a nossa habilidade e jubilarmo-nos com esse esforço quando bem- sucedido.
Deixar que o nosso domínio do idioma – seja qual a for a fonte da qual ele flui em maior abundância – transpareça em nosso trabalho, nosso produto final, nosso próprio ensimesmudecimento, hemistíquio d’ouro, redemoinho do demônio (ou capeta) ou qualquer outro quadro (texto) que componhamos sobre este fundo de ouro – o nosso idioma.
O colunista: Graduado em Letras pela Univille e pós-graduado em Neuropsicopedagogia, é professor de português, tradutor de inglês e o diligente revisor de textos da Revista ESCREVER. Em cada edição, o professor Juliano apresentará meios para que os que escrevem tornem- se mais íntimos da Última Flor do Lácio, nossa língua portuguesa. Dúvidas de palavras, expressões, concordância, estilo? Escreva para julianoriechelmann@ gmail.com e ele responderá nesta coluna.